Sunday, February 26, 2012

Eram quase duas da manhã e eu tinha acabado de rever a aula de tumores pancreáticos. Abri o facebook para ver as novidades antes de ir para a cama e deparei-me com isto. O meu colega de curso que tinha posto a notícia no facebook dizia qualquer coisa sobre os comentários, e por isso fui lê-los. Eram perto de 300. Não os li todos, confesso, mas devo ter lido perto de metade. Cento e cinquenta comentários a criticar os estudantes de medicina. Cento e cinquenta comentários a chamar os estudantes de medicina de mercenários, mentecaptos, burros e estúpidos. Comentários a dizer coisas do tipo "se eu estou no desemprego porque é que os médicos também não hão-de ficar?". Sabem o que vos digo? Dá-me pena. Dá-me pena ver que há pessoas que não são capazes de pensar um bocadinho nas coisas, que não se informam antes de falar, e que fazem generalizações ridículas. Dá-me pena que as pessoas não percebam que muitos médicos no SNS não ganham tão bem assim e trabalham que nem uns cães. Dá-me pena que as pessoas não percebam que, ao contrário do que acontece nos outros cursos, desde que um jovem entra na universidade até ser especialista são pelo menos onze anos. Dá-me pena que as pessoas não percebam que nós estamos efectivamente preocupados com a qualidade do ensino, que queremos aprender mais, que queremos que nos dêem a oportunidade de ter um ensino de qualidade. Dá-me pena que as pessoas não percebam que ter dez alunos à volta de um doente é pior do que ter cinco, que ter alunos a passar pela rotação de cirurgia e não aprenderem a suturar é péssimo, que ter alunos a chegar ao 5º ano sem nunca ter feito um toque rectal é um atentado ao ensino da medicina. Dá-me pena perceber que estou a abdicar de parte da minha vida para poder um dia vir a tratar pessoas que acham que eu só quero é dinheiro.
Eram quase duas da manhã e eu tinha acabado de rever a aula de tumores pancreáticos. Abri o facebook para ver as novidades antes de ir para a cama e quando o fechei só pensava que começa a estar na altura de procurar sociedades com as quais me identifique. 

2 comments:

  1. Eu penso que os médico portugueses devem ser um dos mais bem preparados (é simplesmente uma intuição minha). Assusta-me ouvir dizer que os médicos trabalham mais horas do que deviam, porque não existe quem os substitua, isto pode provocar maus diagnósticos. Acho que os médicos deveriam falar mais com o doente, aconteceu uma vez com o meu pai nas urgência, o médico olhou para o exame mas não lhe disse o que estava no exame e disse-lhe que lhe ia marcar uma consulta, ou seja o meu pai saiu de lá na mesma.
    Uma vez ouvi uma estudante de medicina, a dizer que não gostaria de ser colocada numa terra mais do interior (não colocava se quer essa hipótese), e isso deixou-me triste porque são essas terras que precisam mais de médicos.
    Quanto às pessoas que dizem que os médicos deveriam também sentir o que é o desemprego, acho que o desejar o mal aos outros não vai resolver os problemas.

    Um abraço

    Pedro Ferreira.

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    1. Sim, a comunicação com o doente é algo que falha muitas vezes, principalmente nos Serviços de Urgência, que estão constantemente sobrelotados, o que dificulta ainda mais a situação. No entanto, isso não deve nem pode ser desculpa para não se comunicar a um doente o resultado de um exame.
      Quanto à ida para o interior, isso é uma questão mais complicada. A verdade é que alguns estudantes põem a hipótese de ir fazer o Ano Comum (o 1º ano depois do curso, em que se passa por diferentes serviços) num hospital periférico, porque há menos médicos, menos estudantes, e acaba por se aprender mais; alguns até o fazem. A questão é que depois do Ano Comum vem a Especialidade, que dura entre 4 a 6 anos. A prática de determinada especialidade varia muito dos hospitais centrais para os hospitais perifericos, o tipo de patologias que se vêem num hospital central é diferente do que se vê num hospital periférico, o tipo de procedimentos é também diferente (como é óbvio normalmente os casos mais complicados - e consequentemente mais interessantes aos nossos olhos - vão para os hospitais centrais), e o tipo de recursos também. Por essas razões, os médicos geralmente preferem as especialidades nas grandes cidades - vêem-se coisas diferentes e aprende-se a fazer mais coisas. Alguns médicos (principalmente aqueles que não são naturais de grandes cidades) até pensam em fazer a especialidade e depois ir para o interior. A questão é que quando se acaba a especialidade já se tem entre 28 e 31 anos e uma vida começada (às vezes já com família e filhos) e acaba por se ir ficando... Não quero com isto dizer que eu não acho que devia ser feita uma melhor distribuição dos médicos, acho! É preciso é pensar como é que isso pode ser feito...

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